martes, septiembre 22, 2009

Onde estarão os homens de azul?


Tudo começou em uma fábrica numa cidadezinha do Vale do Itajaí. O Brasil se modernizava, a ferrovia levava e trazia carvão, o país virava do avesso e as pessoas começavam a lotar os bondes nas cidades: era a urbanização do país. Quem tinha mente empreendedora montava pequenas empresas familiares, que logo se convertiam em magazines, que logo se convertiam em redes nacionais de lojas. Mas na cidadezinha de onde partimos, a fita cassete havia apenas começado a tocar a nova onda.

A família de seu Schultz era uma tradicional família alemã. Todos loiros-quase-brancos, com suas roupas e casas e comidas e jeitos de falar. Coisas deles. Toda a cidade estava formada por outros pequenos núcleos familiares como o do senhor Schultz. Mas nem todos eram empreendedores como nosso protagonista: um belo dia, a dona Schultz mostrou que sabia costurar – na verdade, ela sempre soube, só que o marido, atarefado e sempre em largos devaneios, nunca havia reparado no dote da mulher. Quando a estação chuvosa acabou com a horta da família (e aqui se poderia adicionar a fuga das galinhas, a vaca morrendo engasgada, o porco com anorexia, e outros elementos que dão dramaticidade ao relato), seu Schultz passou a empenhar-se em nada mais que buscar algo novo, uma outra fonte de renda para a família que já não agüentava a casa de madeira em estilo alemão, e que sonhava um ático na principal rua da cidade. Pois é neste momento que, entrando na casa a passos lentos, chão rugindo de tão velho, seu Schultz dá com a senhora Schultz costurando uma calça. A glória!

Aqui a fita passa rápido, porque quando Schultz põe uma idéia na cabeça, não larga até que ela se concretize... Apenas um mês depois (o homem é uma máquina!), a fábrica de calças e outras prendas da família Schulz já havia se tornado o último bafo na pequenina cidade catarinense. Schultz começou com 10, depois 27, depois 43, até formar um exército de 70 homens costurando sem cessar, mãos calejadas, suor escorrendo pela testa... Também não tardou para que Schultz assumisse uma postura cada vez mais autoritária. Sua esposa, que começou costurando, sozinha, todas as peças que o marido vendia de porta em porta, havia sido relegada à função de “recolhedora de retalhos”. Nenhuma mulher podia costurar. Na linha de produção, apenas homens bem treinados. Suas mãos não eram quentes como as das mulheres e as costuras ficavam mais perfeitas (algo similar ao que acontece na preparação do sushi... são essas coincidências históricas...).

Todos os empregados de Schultz vestiam as roupas, que no ano seguinte, passaram a reproduzir uma única tendência, o tradicional macacão azul de seu Schultz, com pequenas variações (“para atingir um público amplo”, defendia nosso empresário). A fábrica era a maior da cidade e de longe se podia escutar os apitos de seu Schultz e o sistema de alto-falantes que chamava os trabalhadores de volta ao posto, 15 minutos depois do almoço. Com seu sotaque carregado, o patrão entoava em inglês macarrônico (“quero ressaltar a internacionalidade do meu produto”): Blue men, now! Blue men, now!

Quem se aventurava passar pelos arredores do rio Itajaí naquela época, se espantava ao escutar, lá da estrada, os apitos, sirenes e gritos que moviam a fábrica de Schultz, que só não é um típico anti-herói porque foi o responsável pelo crescimento da cidade sem-nome-fadada-ao-abandono. E foi o responsável pelo batismo do novo município: BLUMENNOW.
Hoje a fábrica de Schultz está parada, vazia... nem museu virou! Quem se aventura, pode ver os retalhos deixados pela senhora Schultz que, num lapso de emancipação e num ataque de fúria, espalhou pela fábrica todos os retalhos de tecido recolhidos durante um ano. Dizem que vive em uma comunidade hippie em Visconde de Mauá. Só costura roupas multicoloridas. A cidade seguiu firme e forte em seu rumo ao futuro. Hoje já é conhecida pelo carinhoso apelido "Blu".

Nosso protagonista se sentiu tão só sem a senhora Schultz que resolveu abandonar a empresa, voltar para a casa de madeira cujo solo rangia mais a cada dia que passava, e nunca mais foi visto na cidade. Nem no Vale. Dizem os blumenauenses que seguiu andando com suas roupas azuis rumo ao horizonte...

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Esse texto é para lembrar, nesse dia especial, que existem pessoas que nos fazem apenas rir – porque são divertidas e agradáveis; que existem pessoas inteligentes, que nos fazem pensar sobre as coisas da vida e do mundo sob uma perspectiva que nunca tínhamos imaginado; existem ainda algumas outras que nos fazem sonhar. E este tipo, o mais raro, consegue conjugar a destreza com a sabedoria, a alegria com a criatividade. E nos fazem mais felizes – porque nos permitem novos mundos, novas aventuras dentro de nós mesmos. São pessoas que viajam nas palavras, mas também nas idéias. Multiplicam-nas! Espalham-nas sem pedir nada em troca! Irradiam o que nós, que estamos dispostos a aprender com seu exemplo, nem sempre sabemos mostrar com graça. Essas pessoas de especial tipologia, por outro lado, fazem tudo isso naturalmente. E sempre com um sorriso, uma palavra, que fazem toda a diferença no final da história... (ainda que a grande história que escrevem esteja em constante construção). Lacerda, desde aqui – de um lugar onde às vezes fica difícil encontrar homens de azul nas esquinas, mas onde tenho buscado aplicar tudo o que aprendi com você -, te mando um grande abraço, com saudade e com felicidade. Desejando que a vida continue te trazendo muita saúde, além de grandes idéias, grandes risadas e grandes momentos.

Com muito carinho, eu, filha da bailarina aposentada e do velejador suicida (e irmã daquela patricinha), mas amiga de sempre, te mando um feliz aniversário. Todo meu carinho e saudade vão nesse texto, que nada mais é que uma pequena homenagem virtual para um grande amigo e exemplo!

martes, septiembre 15, 2009

Para não esquecer: 32 anos sem Steve Banto Biko

 
 
A selvageria do Apartheid matou a Steve Biko em 12 de setembro de 1977. O militante político tinha apenas 30 anos quando foi torturado em Port Elizabeth e levado, nu, até Pretória. Morreu em uma solitária.

Os cinco policiais responsáveis por sua morte não foram processados por “falta de provas”. Ainda que os assassinos sejamos todos nós, cúmplices silenciosos do regime que, até pouco tempo atrás, fazia da África do Sul um país refém do racismo...

Que diria Biko ao ver que o esse mesmo sistema que lhe calou, ainda que com outras caras e nomes, segue vivo nas esquinas, nos muros, guetos e nos assentamento que dividem pessoas e culturas?

Em sua memória, é dever moral continuar falando sobre esse apartheid que se multiplica diante da gente. Nessa solitária estamos todos.

martes, agosto 18, 2009


Abro a janela. Nem sinal de brisa, o ar estático, o bafo seco, deixam-me num estado de letargo permanente. Não é possível sair de casa depois das 10h e antes das 19h. 33 províncias espanholas estão em alerta amarelo (risco) por causa do calor. Madri tem alerta laranja (risco muito importante). Há uma expressão para isso: bochorno. É difícil definir. Sabem quando a cara fica vermelha mesmo você estando imóvel? Ou aquela gota que desce da testa pela lateral do rosto e é seguida por outras gotas que brotam perto do couro cabeludo? Já sentiram aquele sufoco de inspirar e não encontrar ar possível? Ou aquela sensação de ter os pés, as pernas e todas as dobras da pele absolutamente empapados? Pois assim estou. A sola desliza molhada nas Havaianas.

viernes, julio 31, 2009

O dia seguinte a um atentado

*Associated Press

Está na voz que sai do rádio do táxi, no olhar baixo dos que conversam nas tabernas, nas mesmas fotos e palavras que ilustram as capas dos jornais: mais um atentado do ETA depois do cessar-fogo. Em minhas duas últimas passagens pela Espanha, presenciei o temor que se seguiu ao fim da trégua, o atentado no Campo das Nações em fevereiro e agora a explosão de um carro-bomba em Burgos, ao lado de um edifício da guarda-civil onde dormiam as famílias dos policiais.

Hoje, dia seguinte ao ataque, pelas ruas se vê nada mais que dúvida e inconformidade: para quê? E mal havíamos começado a pensar nas possíveis respostas quando,nas TVs, rádios e jornais nos informam da morte de dois guardas pela explosão de um outro carro-bomba, dessa vez em Mallorca. A sensação suspensa é a de que todos os dias serão dias depois de um atentado, de caras baixas e conversas indignadas.

No ano de seu cinqüentenário, o grupo ETA precisa atacar para existir. Ao mesmo tempo, dá provas de todos os retrocessos em termos de estratégia e maturidade política para defender seu objetivo (ainda que seja nulo em argumentos e legitimidade) de criar de um Estado independente na região que compreende o norte da Espanha e o sudoeste da França. Hoje, o que se escuta por aqui é que não passam de uma banda de criminosos. A desmoralização é total – e é aí que reside a única esperança de todos e, particularmente, a minha. Já não se ouve vozes dissonantes como talvez se pudesse escutar como resposta nas épocas do autoritarismo franquista. Nem mesmo o Partido Nacional Vasco têm o que dizer sobre a anti estratégia e a falta de humanidade da organização etarra. Minhas andanças e meus ouvidos bisbilhoteiros me dizem, aliviados, que o repúdio é unânime.

Num tempo em que já se questiona o paradigma do Estado Nação e o próprio processo de construção das identidades nacionais, o grupo terrorista dá passos para trás. E os resultados dos ataques foram nulos: não conseguiu nada mais do que alguns outros tópicos em sua lista de atrocidades. E, diante da incapacidade de resolver o problema do terrorismo através das instituições políticas e com outros problemas de muitas outras ordens a enfrentar, os espanhóis “tiram pá delante”, um dia após o outro.

Do editorial do El Pais de hoje, mais um dia: “Para cometer atentados como los de Burgos y Mallorca no hace falta mucha fortaleza, sino muy pocos escrúpulos.”

miércoles, julio 22, 2009


Granja de San Idelfonso. Não é uma granja daquelas que vem à memória, cheiro de bolo, galinhas no quintal, uma varanda ensolarada... Nem era de São Ildefonso. Era o palácio de Felipe V, rei da Espanha em 1971. Um baita palácio: em um corredor contei mais de 10 ambientes, todos divididos por cortinas pesadas, cada qual com seu lustre de cristais personalizado. Em cada salão, um tema no teto, um tapete no chão. Os relógios eram carregados nas costas ou na cabeça por estatuetas de negros ou índios. Em uma única sala, três da mesma coleção. Mas a ostentação não surpreendia: como esse há mais meia dúzia.

O que também se contava em dúzias eram os vasos chineses de um metro de altura em cada um dos cantos das salas, sobre os móveis e mesas de mogno. Na última sala, o papel de parede mostrava guerreiros em paisagens de amendoeiras e outras árvores esguias. China. A penteadeira tinha a mesma procedência e ocupava lugar destacado. “Desde aquela época”, disse ao Seba quando reparamos, quase ao mesmo tempo, em mais uma estatueta de olhos puxados.

Em grau excepcionalmente maior, réplicas e tréplicas dos mesmos vasos e dos mesmos bibelôs entopem as prateleiras, caixas e cantos das lojas chinesas em Madrid. Dividem espaço com toda a sorte de comida e apetrecho. Tudo. O mundo colide ali, no buraco negro que pode ser uma aparentemente inofensiva loja de “Frutos secos – Alimentación”.

Olho tudo o que levo comigo. Não há nada, nada, nadinha que não tenha passado, em algum momento do ciclo produtivo, pelas mãos de chineses mal pagos e mal alimentados, em fábricas sem condição alguma de segurança. E, mais que isso, não há nada, nada, nadinha que não tenha algum material vindo, por sua vez, dos grandes contêineres que atravessam o Índico levando tudo o que a África tem (e, quase, tinha).

Somos cúmplices – a verdade é que sempre fomos, nos dois casos, tanto da China quanto no da usurpação da África. Qualquer discurso moralizante sobre o que fazem os chineses dentro de seus muros é bobagem. A credibilidade do ocidente está arruinada há muito tempo, principalmente quando se fala de África. Quando começaram a aparecer os investimentos obscuros e dos acordos escusos da China com os ditadores que persistem no continente, as reações (as mais fáceis em termos discursivos e argumentativos) se baseavam precisamente nisso. Quando ficaram vazias, começou-se a debater o futuro dos monopólios que até hoje atuavam abaixo do Saara. Já não mais.

Em 2002 a China passou os Estados Unidos no valor bruto do comércio com os países da África Sub-saariana. Por motivos bem simples, tendo em vista que o continente tem tudo o que Pequim quer e precisa para não deixar 25 milhões de desempregados a cada ano caso a economia não cresça mais de 8%. Ai de se isso não acontecer... O elefante vai cair da bicicleta desgovernada, e o mundo vai sentir o tremor. Quem pode manter esse ritmo senão o continente mais rico em recursos naturais?! Os reis espanhóis não contavam com isso. Ninguém contava (ou contava, tirando proveito, caladinho, da situação que se desenhava).

Sem grandes restrições por parte dos governos locais, por motivos óbvios, e graças ao avanço dos pacotes públicos e privados chineses no continente, as economias da África Sub-saariana cresceram uma média de 6% ao ano desde 2004, com as nações exportadoras de petróleo e minerais na linha de frente. Muitos acreditam que China seja a última oportunidade de África (ainda que muito do que venha vá diretamente aos bolsos das elites e dos corruptos do momento).

Os países, por outro lado, estão vendo a fuga de sua maior riqueza, que lhes garantiria fundos futruros se bem administrada. Além disso, estão observando a derrocada de sua incipiente indústria com a entrada dos produtos falsificados. África está fardada a ser o centro das minas do mundo? A população quer esse modelo de desenvolvimento e de integração à economia global? Tem outra opção?

Seguimos a visita ao palácio-granja com isso e nada mais na cabeça. Os desenhos nos vasos chineses se tornaram sombras daquelas, chinesas. Quando acenderão as luzes!?

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Aqui, um trechinho do texto do Seba que faz parte do jornal SUR-SUR, nossa produção independente exclusiva para o curso na Complu. Material de primeiríssima mão. A primeira edição é um dossiê especial: “El comodín bajo la manga”. Que disfruteis!

“China empezó su nueva penetración en África hace diez años, atraída por las riquezas minerales del continente, sobre todo por sus reservas de petróleo y gas (sin olvidar las de cobre, cobalto, carbón y oro) necesarias para permitir que se mantenga en el país asiático un rápido ritmo de crecimiento económico. Pero fue también la presencia de mercados de fácil penetración, en los que las manufacturas chinas, de buena tecnología y poco precio, desbaratan toda competencia, lo que atrajo la atención de Pekín. Resumiendo: China ha encontrado en África a principios del siglo XXI el territorio virgen y prometedor que le permite saciar su sed de recursos, al igual que EE UU tuvo en el siglo XIX su far west y Europa hasta el siglo XX al resto del mundo. En 2008, el comercio entre China y África alcanzó un valor de 76.000 millones de euros, diez veces más que en 2000. La cifra es cuatro veces superior al total de la ayuda oficial al desarrollo que recibió el continente africano en 2008.”

* Quando estiver pronto, coloco o jornalzinho aqui em PDF.

viernes, julio 10, 2009

Impressões


* Calle Carmen num sábado à tarde. Laura Daudén.

Coisas que vejo, escuto, aprendo e percebo nas andanças e nas aulas. Assim mesmo. Um pouco de cada, uma “ensaladilla mixta”, como se diz por essas bandas. A justificativa é simples: é como estão acontecendo para mim nos últimos dias, de maneira difusa, misturada, desorganizada – mas só de longe. Espero que tudo faça bastante sentido quando colocar em perspectiva, como bem fez o Professor Sanahuja na terça-feira, numa aula que acabou com aplausos. De maneira alguma pretendo tentar fazer o que ele conseguiu: de dados aparentemente dispersos, construir – e o melhor – ensinar toda a lógica das relações que fazem parte da nossa realidade. São só pinceladas, talvez um desafio pessoal que divido com vocês.
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Num chiringito (leia-se “boteco”): entra a chinesa com cabelos loiros. Oferece CDs e DVDs, “os últimos lançamentos”, jura em espanhol enrolado. Não vende um sequer. Sai e, logo depois, outro comerciante adentra e tira da sacola de plástico um relógio e um óculos. Passa de mesa em mesa oferecendo a mercadoria. Sai com menos energia do que entrou. Aí vai o estado do bem-estar social, desaparecendo como miragem no calor madrileño.

Numa cerimônia oficial: Depois de dizer que os estudantes internacionais ocuparam quase metade das vagas (1º - México, 2º - Brasil, 3º - Colômbia) e que as mulheres são maioria expressiva, um economista respeitadíssimo explica a todos os futuros alunos da universidade, de maneira clara cristalina, cada passo que levou à crise financeira que todos estamos vivendo (por aqui o tema é obsessão, por motivos sensíveis e visíveis). Terminou dizendo que a solução está na medida entre a influência do Estado na economia e a liberalização dos mercados (alguém pensou nisso umas dezenas de anos atrás, não?!). Terminou sem mencionar como e quem decide sobre esse equilíbrio.

No metrô: Sebastián se aproxima do violonista que já tem o microfone em posição, ainda que não possa cantar na plataforma. O trem só chega em três minutos e ele consegue, nesse tempo, contar que é equatoriano, que está desempregado, que mora em Madri há doze anos, que não sabe nada música flamenca, que não pode responder ao nosso pedido porque podem lhe expulsar do metrô, e que tem que entrar no vagão mais cheio de todos, para andar ao lado da sorte. O trem chega, pára, ele entra, some, parte, a gente fica. Pensando.

No caminho para a faculdade: Ela acabou de se formar em jornalismo, como eu, e veio da Venezuela com o que podia trazer. Eu não sabia até então que os venezuelanos têm um limite de dinheiro para viajar: cada pessoa pode converter $1700. Mesmo que tenha mais dinheiro. Mesmo que tenha que passar um ano fora. Ela veio para a Espanha sozinha, para fazer o curso, com o sonho de voltar com um computador (as compras pela internet estão limitadas aos $400). Metade do que trouxe vai para o investimento. O resto é para o malabarismo. Só assim.

Na parada: Saio do metrô Banco de Espanha em busca da Calle Zorilla – onde acontecia uma exposição de Dorethea Lange (genial, por sinal) –, e coloco a cabeça para fora no meio da Parada do Orgulho Gay de Madri. Um milhão e meio de pessoas pediam que o Estado espanhol fosse laico na prática e que respeitasse o direito de união de pessoas do mesmo sexo. Duas senhoras, com cabelos brancos e olhar curioso, cochichavam de lado enquanto viam passar a bateria regida por um brasileiro e liderada por uma passista (bandeira estrategicamente amarrada na cintura).

Na aula: Todos sentados, entra o Professor Sanahuja e pede que, antes de mais nada, respondamos à seguinte questão: “quem manda aqui?”. Silêncio. As cinco horas que se seguiram foram de total concentração, de discussões sobre crise, China, guerra e narcotráfico, quebradas apenas por um bom-humor e por outras perguntas ainda mais capciosas. Algumas idéias: “quando se escreve a realidade, se está construindo a realidade. Quando descrevemos... estamos descrevendo ou concretizando em forma de discurso uma aspiração?”, “a definição de uma ameaça é uma tomada de poder, é um ato político”, “o Estado-Nação já não é parte da solução, é parte do problema”, “vivemos em uma sociedade apolar: ninguém tem o poder, ele está demasiadamente difuso, fragmentado em 192 países soberanos”. Resumindo: quem manda aqui? Ninguém.

lunes, julio 06, 2009

Por terras estrangeiras

Parece que longe de casa nos abrimos mais para as singularidades do cotidiano. Estou em um bar/cafeteria chamado Cristina - suponho que é a morena alta e forte que comanda o balcão e a cozinha ao mesmo tempo. São quase 15h de um sábado de calor infernal. Madrid está vazia (como bem comemorou o motorista de taxi, poucas horas antes, em cada esquina que dobramos). Cristina tem uma garçonete para as quatro mesas. Me serviu uma jarra de água da torneira, um pão, salmorejo e frango ao molho roquefort. O homem ao meu lado não passou da coca-cola, que ainda ocupa um terço do copo, descendo lentamente enquanto o senhor se perde na leitura de um exemplar volumoso. Sete pessoas de uma família se apertam na mesa à esquerda e tratam de dar conta da comida que não para de chegar. O avô, na cabeceira, guia as discussões típicas. Do outro lado do salãozinho - que, apesar de pequeno, consegue abrigar uma luminosa máquina de apostas -, uma mulher, amiga da garçonete, cuida de um bebê. Balança de um lado a outro o soprinho de vida e, em cada intervalo, vê a amiga mimá-lo. Depois de uma dessas cenas pacíficas, que me enchem o coração de saudade, a garçonete se dirige a mim: "Cariño, eres de aqui?!". Diante da explicação de que venho do outro lado do charco, ela questiona: "Y que haces tan lejos?". Vim estudar, respondo - mas a verdade é que não tenho certeza do que falei. Parece uma frase demasiadamente limitadora para o que eu sinto que começa a acontecer na minha vida a partir de agora.

jueves, junio 18, 2009

Sobre príncipes e meninos


Sete da manhã. O Morro da Caixa está na rua, nas pessoas que esperam no frio o ônibus que não vem, nas crianças que caminham a pé para a creche, nos cães que, percebendo o início de um novo dia, já se espreguiçam no meio da rua, revolvem os lixos, se juntam às pessoas que esperam. Um novo dia de greve no sistema público de transporte significa um novo dia de perdas e atrasos, de um dinheiro necessário que talvez não chegue. Quem parece sentir mais os desafios da rotina são as crianças. Cobertas como podem, com seus gorros e luvas, caminham no meio das vielas, das subidas que levam para o alto da favela.

Morro da Caixa, Caiera de Cima, uma das 32 comunidades carentes de Florianópolis. Aqui, o paraíso turístico é nada mais que uma vista: entre as casas sem reboco e os fios da eletricidade roubada, se pode ver a ponte, a beira-mar, a natureza que faz a população da capital triplicar na alta temporada. Nada mais que isso, uma vista que sou convidada a ver por Raí, jovem educador do projeto social Aroeira. Educador e ex-chefe de morro. Raí foi preso aos 15 anos e, ao sair, prometeu que trabalharia até o esgotamento para que nenhum outro jovem passasse pelo o que ele passou. A luta dele tem mostrado os frutos: além de conseguir colocar em acordo os três maiores chefes de morro da ilha, gerando uma frágil mas necessária paz, a maioria de seus alunos já está integrada ao mercado de trabalho.

O método é simples, sem fórmulas mágicas ou receitas que se vendem em discursos. O esporte foi a arma de Raí. Todos os dias, ele sobe o morro e coloca em um ônibus fretado cerca de vinte jovens e crianças de grande vulnerabilidade. A condição é o respeito, a freqüência na escola, o comprometimento. Eles vão para a praia, vestem roupas de borracha, pegam suas pranchas e descobrem a liberdade no surf. Durante a manhã, extravasam todo o sentimento acumulado, toda a dor da marginalização, toda a pressa para sobreviver.

Mas Raí sabe, por experiência, que isso não é suficiente para suprir as necessidades e diminuir o risco dos jovens. Promoveu a construção de uma fábrica de pranchas, onde os meninos da Caiera descobrem o valor do trabalho e do dinheiro, tiram renda e se desviam, ainda que de raspão, do caminho (ou de todos os caminhos) que parecem levar ao tráfico – afinal, o que é um salário quando se pode ganhar muito mais com a venda de drogas?!

Hoje os meninos não tem lanche: “Por que não tem comida hoje Raí?”, pergunta Dudu. “Quem mandou vocês jogarem o lixo pela janela do ônibus?!” A resposta não deixa margem para tréplica. Assim, apenas por ser um exemplo, Raí ensina (e não é difícil perceber o valor e a entrega que são necessário para fazer o que ele faz). Depois de um par de horas de amizade, esporte e diversão, os meninos embarcam no ônibus que os levará de volta à Caiera. O que preocupa Raí, e que me preocupa também, é o que acontece depois, em cada casa, em cada vida que começa e termina na rotina da favela. Uma coisa que a cidade, apressada lá embaixo, não vê. Raí, o príncipe do morro, sobe mais uma vez para seu castelo de madeira.

martes, junio 16, 2009

Vinicius

*Sebastião Salgado

O Operário em Construção
(inteirinho, porque cada verso vale a pena!)

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

viernes, mayo 22, 2009

As coisas que tiramos do caminho

A avenida é larga e, em uma das margens, condomínios de luxo eletrificados e vigiados. Do outro lado, arranha-céus espelhados refletem a grande cidade que somos, ou que queríamos ser, levados por um sentimento cosmopolita quase ridículo - tendo em conta o que, de fato, acontece lá embaixo, nas margens do rio Pinheiros. O que acontece é a remoção da favela Jardim Edite, uma das mais antigas do Brooklin.

Agora, com a inauguração da tal ponte estaiada (projeto megalomaníaco e não menos pesado ao cofres públicos), o valor do solo na região quase triplicou. O metro quadrado agora vale US$ 4 mil. Por que deixaríamos, portanto, esse valioso pedaço de terra mal-cheiroso na mão de favelados? Por que não retirá-los e construir, no local, um "conjunto habitacional" de luxo?! Pois a resposta não foi hesitante: rolo compressor! O zinco não combina com o mármore.

E assim fazemos. Tiramos do caminho o que incomoda, espelhamos a janela para não ver o que se passa lá fora.


jueves, mayo 14, 2009

Sono da razão


Do blog da Gra, o Nemlixo-Nemluxo, um tapa na cara dos direitos fundamentais, uma doença da humanidade e a radicalização da xenofobia.

Na Itália agora é crime ser imigrante


*CARLES RIBAS, para o El Pais

lunes, mayo 11, 2009

The greatest silence



http://thegreatestsilence.org/

jueves, abril 30, 2009

Diamantes estelares


Às vezes, os cientistas e os jornalistas têm a capacidade de tirar o encanto das coisas mais graciosas – tudo em prol da objetividade e da informação. O quão longe isso está, no entanto, da incerteza e da beleza da realidade.

O que vocês diriam, meus amigos, se descobrissem que fazemos parte de um universo que está repleto de pequenos diamantes?! Que imagem mais linda, de pequenos pontos cintilantes disperso na infinidade negra de tantos buracos, perigos e escuridão.

Quando penso nisso, não me importa o tamanho, o peso, do que são compostos, para quê servem – tudo isso me faria destruir a idéia tão linda de diamantes espaciais, livres, ao alcance de qualquer um que deseje vê-los (apesar de saber que não poderíamos).

Pois eis o que dizem os jorna-cientistas:

“El Universo está repleto de diminutos diamantes tan pequeños como un micrómetro tamaño inferior al grosor de un cabello humano) que se localizan en los discos de residuos que rodean a algunas estrellas, según confirman científicos que estudian en el telescopio Subaru en Hawaii (Estados Unidos).

Aunque en su totalidad estos suponen poco peso para el total del disco de residuos, su volumen puede llegar a ser tan grande como una parte de la Luna. Sin embargo, pocas estrellas con diamantes en su disco han sido identificadas. Así, los expertos han revelado que encontrar diamantes en el espacio requiere condiciones "muy especiales".

(...)

La necesidad de tales condiciones especiales explicaría porqué se ven tan pocas estrellas de estas características. Según los expertos, es posible que haya toneladas de diamantes que todavía el ser humano no puede apreciar a pesar de la tecnología.” (El mundo)

Se ao menos nos deixassem imaginar…
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*Obrigada ao meu amigo João Paulo, que me mandou a notícia graciosa e que, com muita paciência, sempre me ensina sobre o universo que não se vê nos telescópios.

lunes, abril 27, 2009

Retrato brasileiro

O Jonathas participou de um grupo do curso que foi para o Projeto Rondon no início desse ano. A viagem vai dar origem a uma exposição fotográfica e a um documentário. A foto abaixo faz parte do projeto e foi gentilmente cedida pelo meu querido amigo, fotorepórter de futuro e uma das pessoas que provam que é possível no jornalismo como ferramenta de conhecimento e aproximação.

Pedi que ele fizesse uma legenda que resumisse o que ele via ali, no olhar do garoto que terminava de pintar uma linda bandeira do Brasil. Obrigada pelo presente, Jonathas! (Aliás... no site dele, outros belos trabalhos!)


"Estar com crianças é uma bênção que nos faz aprender (ou relembrar) essências da vida. Talvez a mais simples e valiosa seja que um sorriso é uma coisa tão simples mas imaculada. Nós, como fotógrafos, eternizamos instantes. Às vezes instantes tristes e trágicos, que negamos olhar e viramos o rosto para não sentir náuseas. Mas também instantes belos pela sua simplicidade e incrível honestidade com a essência humana. Nesta foto, tirada numa creche de um bairro carente de Monte Alegre, no Pará, o olhar do garoto traduziu, para mim, toda alegria que exalava de seu espírito puro e iluminado." (Jonathas Melo)

lunes, abril 20, 2009

Muros

O cordão seria formado, mais uma vez, como uma demonstração de repulsa à violência que o muro representa. Para alguns, já não havia porque respeitar os 5 km que tecnicamente separam o território saarauí da parede de areia que corta o deserto. Lá estava ela, protegida por militares marroquino, como uma serpente de 2200 km. Brahim Husain Abait, de apenas 19 anos, não ouviu o apelo da Juventude da Frente Polisario. Avançou com todo o seu desespero, com todo o seu orgulho, com toda a dor de nascer no exílio. Pisou numa das minas que, com outras 9 milhões, formam o que pode ser o maior campo minado do mundo. Os gritos de dor foram intercalados com pedidos para que a bandeira saarauí que havia caído de suas mãos fosse devolvida.

Os gemidos de Brahim ressoaram em cada um dos 2500 participantes da manifestação. E chegaram até aqui. Ontem, uma reportagem no canal SPORTV mostrou um pouco do que acontece nos acampamentos de refugiados saarauis na Argélia. Mostrou a vida de outros jovens que já não agüentam esperar atrás da alambrada, que não medirão conseqüências para alcançar algo de que um dia já ouviram falar: a tal da paz. A matéria será reprisada amanhã, dia 20, às 23h.

MUROS - Por Eduardo Galeano

martes, abril 14, 2009

A Somália entrou no mapa


Os cada vez mais frequentes ataques de piratas a embarcações européias e americanas colocaram a Somália no mapa. Como de costume, a resposta enfática dos líderes ocidentais poderá dar conta dos problemas momentâneos gerados pelos ataques. Não mais que isso. Ninguém ainda mostrou sinais de que espiará o que acontece logo ali, em terra firme.

Desde 1995, quando a ONU resolveu abandonar o território controlado por milícias e chefes tribais, o mundo esqueceu das paredes bombardeadas de Mogadiscío. Foi uma desistência multilateral, um atestado de inoperância.

Como diz o jornalista Ramón Lobo, a pirataria é a única indústria que funciona. No ano passado, o negócio rendeu 75 milhões de euros.

Post de Fábio Zanini no blog Pé Na África.


Reportagem fotográfica do ElPais.

jueves, abril 09, 2009

Muto

Não é um vídeo novo, acho que muitos já devem ter visto... mas vale sempre a pena! É do blublu.org.

miércoles, abril 08, 2009

15 anos do genocídio

Para não esquecer... sugiro um multimídia produzido pelo Media Storm (do qual a foto abaixo faz parte).

* Jonathan Torgovnik. Ganhou o Prêmio de Retrato Fotográfico da National Portrait Gallery de Londres. Joseline Ingabire com sua filha Leah Batamuliza, Ruanda.

lunes, abril 06, 2009

Uma coisa


Texto de Noemi Jaffe, publicado edição 28 da revista Piauí. Gostei muito, muito mesmo, a ponto de achar que vale a pena disponibilizá-lo aqui, na íntegra. Quem quiser, pode ler direto do site.

É assim que nos tornamos temporais, fartamente solitários e amantes incompreensíveis da solidão, incapazes, como eu sou de compreender a história infinita

Eu aprendi que qualquer coisa pode se transformar numa história interminável e infinita. A palavra tigre contém o conhecimento de um tigre, de todos os tigres, dos mamíferos, de sua história no planeta, do capim que eles comeram, dos insetos que comeram o capim - da idéia de eternidade contida nos insetos, por oposição à idéia de tempo, propriedade dos mamíferos. Será que então estaríamos condenados a não falar sob pena de que, ao dizermos qualquer palavra, estaríamos traindo a eternidade, o galope dos cavalos e tudo o que ainda não aconteceu? Ou, ao contrário, estaríamos livres para sempre dizer tudo o que quiséssemos, mesmo que aparentemente sem sentido nenhum, já que todas as palavras sempre conteriam todo o conhecimento do mundo e da humanidade? E será que então estaríamos sempre, a todo o momento, realizando o sonho da biblioteca de Babel, do livro dos livros, simplesmente ao falar, mesmo que seja "que horas são"?

Tudo isso era porque eu queria contar um caso simples, que eu achei que, por ser tão simples e maternal, não teria estofo para preencher uma história. Foi então que eu lembrei que havia recentemente aprendido com meu fígado, com as coxas, com os cílios, que todas as histórias são intermináveis e contêm todas as outras que já foram, não foram, serão e não serão contadas, e então eu percebi que sim, que eu poderia contar esta história boba, porque ela conteria também as histórias que todas as mães contaram aos filhos nas casas das aldeias polonesas do século XII, e as histórias que os condenados ao calabouço pensaram antes de morrer, e as histórias que meus sucessores no futuro vão contar sobre um passado distante, quando um pio de passarinho ainda se misturava ao barulho de um motor velho de caminhão.

E a história que minha filha me contou é que o pai dela um dia lhe disse que "nada é perfeito". E ela, como era criança - e como as crianças acreditam na integridade das palavras dos adultos, porque para elas os adultos sempre dizem a verdade, sem saber que na verdade são elas, na sua crença, que são proprietárias da verdade que existe, e que consiste somente em acreditar nela e não em dizê-la, porque no momento em que você diz qualquer coisa você já está mentindo, mas não dizer e acreditar na verdade do que os outros dizem, aí é que está a verdadeira verdade -, ela, minha filha, acreditou que "nada é perfeito". Mas como era possível que nada fosse perfeito? Se aquilo era verdade, como minha filha continuaria acreditando na verdade perfeita do que dizia o pai? Se tudo o que o pai diz é perfeito em si mesmo, independentemente do conteúdo, perfeito só na condição única de ser pronunciado por um pai, como pode então um pai dizer que "nada é perfeito"? Se essa frase é perfeita, por ter sido emitida pelo pai, o que resta do pai? E o pai, que desenha muito bem, desenhou um dos 101 Dálmatas para a minha filha. E o desenho era perfeito, idêntico ao dálmata que aparecia na figura do livro de histórias. E minha filha pensou que era impossível que nada fosse perfeito e entregou-se ao exercício de encontrar algum defeito no desenho do dálmata perfeito, porque seu pai lhe havia dito que nada é perfeito. Se ela achasse perfeito o desenho do dálmata, estaria traindo a verdade do pai. Se, respeitando-o, achasse o desenho do dálmata imperfeito, trairia então sua percepção da perfeição, seu amor à capacidade absoluta de seu pai de desenhar um dálmata perfeito.

É assim, eu imagino, e aqui fiz meu primeiro parágrafo nessa história que eu supunha interminável, mas que agora, por ter posto o parágrafo, percebi que se aproxima do fim, é assim que a credulidade se desequilibra, estremece o pomo da certeza e se transforma numa pergunta, metralhadora sagrada do medo, do sonho e da maldição. É assim, eu acho, e isso já soa como uma moral da história, mas eu não me importo nem um pouco que seja assim, porque eu não tenho nada contra morais de histórias, porque já que as histórias acabam, então que elas acabem alguma hora, e que pelo menos seja com algum pequeno ensinamento, para que a tristeza do fim de qualquer coisa e de qualquer história se carregue de alguma textura táctil e o homem que ouviu a história vá para casa pensativo e tome café e pense se ele quer mesmo trabalhar naquela noite e olhe para sua mulher que está lutando com a boca do fogão que não acende, com um carinho que voltou e logo vai desaparecer. Mas eu dizia que acho que é assim, com a instalação da dúvida como um cabo elétrico instalado por um eletricista numa criança, é assim que o tempo começa a atuar sobre o olhar curioso e o torna um pouco desconfiado.

E é assim que nos tornamos temporais, fartamente solitários e amantes incompreensíveis da solidão, incapazes, como eu sou, de compreender a história infinita, o caso milenar que está a querer me contar aquele cruzamento de duas montanhas, uma mais alta e outra mais baixa, que eu vejo paradas no horizonte. Elas estão falando, ouço o eco de uma história silenciosa, que contém toda a verdade do tempo, das histórias, das palavras e do silêncio. Mas eu não consigo ouvir.
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* Escher

martes, marzo 31, 2009

6 anos no inferno

20 de março de 2003. Invasão do Iraque. Bagdá caiu alguns dias depois, em 4 de abril. Depois de tanto tempo, tempo que poderia ser contado em baixas, já esquecemos de discutir em que circunstâncias uma guerra de agressão se tornou uma guerra "preventiva" - e o tempo passa mais, dificulta mais, esquece mais...

Numa aula de Direito Internacional, o professor levantou uma questão crucial para entender o jogo da guerra: alguns anos antes do fatídico discurso de Bush que terminou - como de praxe - com o "God bless America", e que determinou o início dos borbardeios, os Estados Unidos já finaciavam pesquisas no âmbito jurídico para que se consolidasse a doutrina da guerra preventiva. Era a legitimação necessária para não incorrem no erro de burlar o próprio sistema universalista que ajudaram a construir na ONU e no Conselho de Segurança.

Sim. Não esqueçamos que a ONU mesma nasceu dentro de um sistema de orientação bélica. Mesmo que a palavra não faça parte do vocabulário diplomático - que prefere termos como "paz" ou "manutenção da paz", seja que estado de espírito for esse -, o organismo se baseia na regulamentação da guerra. Legitimar ou não uma invasão?!

A guerra por agressão, que virou guerra preventiva, a conhecida guerra contra o terror é uma das tantas que o tempo parece querer cobrir.

Recomendo um especial multimídia preparado pela Reuters quando o conflito completou 5 anos.
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"Una vez conectados gracias a la nueva técnica, descubrimos que tenemos poco que decirnos." (R. Kapuscinski)

* Jerry Lampen, Reuters

jueves, marzo 26, 2009

Mais Playing for Change

Todos os que assistem pela primeira vez os vídeos do projeto têm reações similares. Ontem foi a vez do Jonathas! Aqui, um videozinho em comememoração ao aniversário de Robert Nesta Marley, o Bob - que foi em 6 de fevereiro! Perdoem o delay...


miércoles, marzo 25, 2009

Para não esquecer

A guerra no Congo não acabou com a captura do líder tutsi Laurent Nkunda. Não acabou porque não se trata apenas de um conflito étnico ou político entre forças congolesas e ruandesas. O problema é que, para nós, é mais fácil entender um conflito que responda à idéia que sempre fazemos dos africanos - estão se matando! Como seria complicado explicar que, por trás das atrocidades cometidas pelos dois bandos, existem interesses econômicos ocidentais. Como sempre, prefirimos manter uma explicação asséptica.

Como bem me lembrou meu amigo João Paulo, uma das principais causas do conflito é a disputa pelo controle das minas de Coltan (columbita + tantalita, dois minerais dos quais se extraem metais para a fabricação de celulares, computadores e estações espaciais). Pois sim: nossos computadores podem estar financiando a guerra em Kivu, que obrigou a mais de 2 milhões de pessoas a deixarem suas casas. A cada quilo que Conltan contrabandeado para Ruanda, a milícia recebe 10 dólares. Por que será que, dos 17 mil soldados da ONU que hoje estão no território (sim! A maior missão de paz das Nações Unidas), apenas centenas foram deslocados para a região?!


martes, marzo 24, 2009

Jornalismo e Direitos Humanos

http://www.pmasdh.com/

Novo blog de jornalistas que promovem a defesa dos direitos humanos como um dois eixos da profissão. Nada mais coerente e necessário!

"La defensa de los Derechos Humanos es una de las tareas primordiales del periodismo y los periodistas no podrán ejercer su labor si sus propios derechos humanos son vulnerados."

Amém.

lunes, marzo 23, 2009

Johnny Osbourne - We need love

Pelas imagens, pela música, pela mensagem...

viernes, marzo 20, 2009

Pão


Sol das 7h batendo na janela do carro, tráfego intenso no sentido contrário, conversando com a Gi sobre impressões compartilhadas.

Quando os respectivos aviões pousaram em Guarulhos – bafo quente e úmido, confusão no desembarque, o português brasileiro em todas as bocas, pão de queijo quentinho na vitrine – o coração acelerou gostoso: em casa! Um sentimento de amor apertou, quase com vergonha, dizendo como é bom voltar para a terrinha. Sem demagogia ou nacionalismo barato – apenas um sentimento puro de segurança, de pertencimento. “Na mesma hora pensei nos saarauis. Agora entendo melhor o que significa para eles a liberdade de voltar para casa”, disse a Gi. Durante a viagem, muitas vezes nos pegamos pensando em como é difícil entender com profundidade o que é a luta pela terra e pelo regresso. Nunca saberemos o quanto dói. Ouvimos palavras como dignidade e direito, mas continuávamos perguntando se a luta valia a vida (alguma vale?!).

Isso tudo para introduzir uma experiência:

Estávamos cansados e certos de que não queríamos outra noite ao relento (o inverno no Saara não é nada amigável). Fomos dormir com uma família de nômades, que nos acolheram com música, comida e carinho. No dia seguinte, fui despertada pela avó que, anos atrás, havia fugido com seus filhos, andando pelo deserto, escondendo-se das bombas que caiam. Não sabe quantos anos tem – e, ao final, qual é a diferença?! "´Os nômades tem uma relação diferente com o Espaço e com o Tempo´", disse um antropólogo espanhol.

Isso tudo torna ainda mais significativo o ritual do pão, que acompanhei naquela mesma manhã fria. Com toda sua sabedoria e um pouco desconfiada, a matriarca perguntou por que eu me interessava tanto por aquilo. Afinal, era apenas água e farinha. Assim de pobre. Assim de insosso. Respondi que esses traços de sua cultura, tão bonita e simples, me ensinam muito sobre sua história. De fato, quanta coisa pensei e aprendi enquanto a via amassar tudo o que tinha naquele jarro antigo; enquanto esquentava a lenha e desenhava um círculo no chão, enquanto abria a massa e, num gesto divino, soltava-a bem em cima de um buraco; enquanto a cobria com areia e sorria indicando que estava feito.

O pão cozinha no calor da sua terra. Estamos nas zonas liberadas do Saara Ocidental, a pequena parte do território que ainda está sob controle saarauí.

martes, febrero 17, 2009

Nenhum ser humano é ilegal

Depois da criminalização da imigração, a Itália apresenta sua nova investida xenófoba: o governo da região de Lacio, onde está a capital Roma, terá seus campos de imigrantes - que são um assombro só por existirem - isolados e vigiados por câmeras e policiais.

A notícia pode ser vista na íntegra aqui.

Qualquer semelhança com os velhos campos de concentração nazis?!

* Refugiadas en la Ceniza, del español Borja Alegría Hernández. La fotografía fue tomada en el barrio Ponte Mammolo de Roma (Italia), un campo de barracas construido por una comunidad de inmigrantes, la mayoría provenientes de Eitrea, a los que se ha concedido refugio al salir de su país huyendo del conflicto que estalló en 1998 entre Eritrea y Etiopía.

lunes, enero 26, 2009


Samuele Pellecchia, da agência Prospekt.

lunes, enero 19, 2009

Enquanto isso, no Brasil...


"O mergulho nas trevas do lamento e da impotência foi tão profundo que alguns se perderam pelos subterrâneos, ficaram na margem ou escolheram as viagens permanentes. Mas muitos cansaram de se lamentar, talvez com medo de se tornarem tristes heróis de uma 'guerra acabada'. Estão voltando a querer, isto é, estão recuperando a vontade para voltar a fazer - apesar de tudo." (Vladimir Herzog)

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Justiça arquiva caso de jornalista Vladimir Herzog, morto pela ditadura


http://knightcenter.utexas.edu/blog/?q=pt-br/node/2724

A juíza federal Paula Mantovani Avelino determinou o arquivamento dos pedidos do Ministério Público Federal para que fossem investigadas criminalmente as mortes do jornalista Vladimir Herzog e do militante de esquerda Luiz José da Cunha, torturados e assassinados por agentes do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) durante a ditadura militar, informaram o Último Segundo e O Globo.

A juíza concordou com a argumentação da procuradoria criminal, que considera os crimes prescritos, disse O Globo. Isto significa que, em ambos os casos, já se passaram mais de 35 anos, tempo superior ao da pena máxima fixada abstratamente para homicídio, explica o Último Segundo.

Outro argumento da juíza foi o fato de o Congresso brasileiro nunca ter ratificado a convenção internacional de 1968, que transforma tortura e assassinatos políticos em crimes imprescritíveis. O Globo acrescenta que entidades civis pretendem levar o caso à Justiça internacional: Chile e Peru não ratificaram a convenção. Isso não impediu que fossem condenados pela Corte Interamericana, disse a procuradora cível Eugênia Fávero.

No dia 24 de outubro de 1975, o jornalista Herzog, que na época era diretor do Departamento de Jornalismo na TV Cultura, apresentou-se na sede do DOI-Codi, em São Paulo, onde iria prestar esclarecimentos sobre o seu relacionamento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi preso, torturado e morto no dia seguinte, acusado de ligações com o partido. Leia aqui reportagem do Observatório da Imprensa sobre Herzog.

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Engraçado (para não dizer trágico) pensar nisso no momento em que o Brasil compra briga com a Itália para defender Battisti, do grupo Proletários Armados pelo Comunismo, condenado por 4 assassinatos. Vai entender...

martes, enero 13, 2009

Apartheid


"SOB O ÓDIO DOS VIZINHOS. Atrocidades da guerra na Faixa de Gaza atrapalham o entendimento de Israel como uma ilha de democracia cercada de ditaduras no Oriente Médio". (Veja, 14 de janeiro de 2009). Mesmo sabendo que não devo mais me surpreender com as pérolas da Veja, não pude deixar de tremer, desconsolada pelas formas de jornalismo que ainda perduram... Por trás do título, uma dúzia de soldados israelenses choravam a morte de um companheiro.

Nosso semanário esqueceu de algumas coisas: (1) O que é democracia? (2) O ódio Israelese também mata - 890 vidas desde 27 de dezembro; (3) Israel fez o que justamente o Hamas esperava: revidou, abalando o poder da Autoridade Palestina e seus esforços em alcançar a paz através da diplomacia; (4) Israel está violando os direitos humanos em tantos pontos que seria impossível enumerá-los aqui; (5) nem a justificativa, nem o custo desta guerra, nem mesmo a possibilidade do objetivo ser alcançado se sustentam; (6) a Palestina e seu direito de existir não pertencem ao Hamas que, há muito tempo, deixou de lutar em prol dos palestinos.

Pois vejam vocês a última façanha da "democracia" israelense: os dois partidos árabes responsáveis por representar 20% da população foram banidos da próxima eleição, que deve ser realizada no começo de fevereiro. Em carta de 2001 endereçada ao jornalista Thomas Friedman, Nelson Mandela já alertava para a nova cara do Apartheid:

"(...) Israel não pensava num 'Estado' e sim numa 'separação'. O valor da separação mede-se em termos da capacidade de Israel para manter judeu um Estado judeu e de não ter uma minoria palestiniana que pudesse no futuro transformar-se em maioria. Se isso acontecesse, obrigaria Israel a tornar-se ou um Estado laico e bi-nacional ou a tornar-se um Estado de apartheid, não só de facto, mas também de direito.

Thomas, se você prestar atenção às sondagens israelitas ao longo dos últimos 30 a 40 anos, vai ver claramente um racismo grosseiro, com um terço da população a declarar-se abertamente racista. Este racismo é do tipo 'Odeio os árabes' e 'quero que os árabes morram' Se você também prestar atenção ao sistema judicial israelita, vai ver que há discriminação contra os palestinianos, e se considerar especialmente os territórios ocupados em 1967 vai ver que há dois sistemas judiciais em acção, que representam duas abordagens diferentes da vida humana: uma para a vida palestiniana, ou para a vida judia.

Além disso, há duas atitudes diferentes sobre a propriedade e sobre a terra. A propriedade palestiniana não é reconhecida como propriedade privada, porque pode ser confiscada. Para a ocupação israelita da Cisjordânia e de Gaza, há um factor suplementar a tomar em conta. As chamadas 'Zonas autónomas palestinianas' são bantustões. São entidades restritas no seio da estrutura de poder do sistema israelita de apartheid.

O Estado palestiniano não pode ser um sub-produto do Estado judeu, só para conservar a pureza judaica de Israel . A discriminação racial de Israel é a vida quotidiana dos palestinianos, porque Israel é um Estado judeu, os judeus israelitas têm direitos especiais de que os não-judeus não beneficiam. Os árabes palestinianos não têm lugar no Estado 'judeu'.

O apartheid é um crime contra a humanidade. Israel privou milhões de palestinianos da sua liberdade e da sua propriedade. Ele perpetura um sistema de discriminação racial e de desigualdade."

lunes, enero 12, 2009

Pernambucosevillano


João Cabral de Mello Neto também era sevilhano de coração – demorou até que revelasse isso para vocês, queridos amigos. Por isso, me desculpo! A Luiza, outra apaixonada pela cultura espanhola, contou tudo em uma matéria publicada no ZERO em Revista em outubro de 2007. Sinto também pelo delay...

Pois é. Pelo o que a Lú nos revela, o grande poeta pernambucano, que não era bobo nem nada, também gostava de ficar perto da praça La Campana, compondo versos modernistas e vendo as sevilhanas desfilarem coques e flores durante as tardes de verão.

Como João Cabral não veio para esta página antes ainda é uma incógnita. (minto: egoísta, acho que não queria dividir com mais ninguém a informação preciosa, a sensação de que só ele e eu vimos com o mesmo deslumbramento os pores-do-sol no Guadalquivir!)
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Sei que a maioria já conhece “Morte e vida Severina”, que acompanha as fotos de Sebastião Salgado. Mas nunca é demais relembrar aquele início, irretocável, onde temos o primeiro contato com “Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba” – nós.

Esse post vai para meu grande amigo Paulo de Tarso que, 7 anos atrás, me cutucou durante uma aula chata e me entregou um poema do Vinicius. Mas “Morte e vida” ainda deve ser o seu favorito.

Morte e Vida Severina
(João Cabral de Mello Neto)

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR
QUEM É E A QUE VAI

- O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

domingo, enero 11, 2009

Playing for change



Iniciativa incrível e, como as melhores, da maior simplicidade: unir através da música! Agradeço ao meu amigo Seba por ter me apresentado um projeto tão bacana, que agora divido com vocês. Neste endereço poderão acessar o site da organização. Recomendo que todos vejam o vídeo de apresentação do projeto - emocionante!

jueves, enero 08, 2009

Um pouco de doçura

* foto de Rina Castelnuovo /The New York Times

As desilusões causam mais estrago em janeiro. Ao longo do ano, esquecemos dos pedidos e sonhos feitos na hora da virada. Em março, junho, outubro, o rastro deixado pela guerra se confunde com outras tantas datas comemorativas e acontecimentos em capitulares. Mas agora, em janeiro, os desejos estão frescos na memória e a realidade arde nos olhos logo depois do foguetear do reveillon.

Para adocicar esse sentimento, escolhi postar aqui um texto de Fernando Sabino sobre a simplicidade – ou sobre a felicidade por trás dela. Regininha o apresentou numa inesquecível aula de crônicas, e sou grata por isso. Um sorriso infantil honesto, para que possamos nos lembrar de como ele é bonito e, por um breve momento, ter a paz de volta:

A última crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

miércoles, enero 07, 2009

Em Gaza

Para os que estão acompanhando a guerra em Gaza, recomendo o blog de um palestino que mora lá. http://ingaza.wordpress.com/

Direto da fonte, preciosas informações alternativas.