jueves, agosto 16, 2007

Clássico Marroquí - Parte I

Estávamos a caminho de Fes, cidade abraçada pelo reino de Mohammed VI. Por sorte, naquele trecho tínhamos conseguido uma cabine que não estava lotada e, por sorte também, me tocou sentar na janela. Meus três companheiros de viagem (a dupla italianíssima Cristina e Máximo, e Yenny, minha grande amiga mexicana, fazedora de quesadillas & guacamoles) recuperavam o sono que não matamos durante a noite em Asilah, um povoado na beira do Atlântico.

Peço licença para relatar brevemente nossa passagem por essa cidade: havíamos sido levados pela conversa de Omar e de seu comparsa Abdulah que, em cinco minutos, fez da casa onde morava com a mãe um hostel “bacana”. Os 5 euros que pagamos para dormir na sala do anfitrião incluíam o chá de boas vindas (delicioso!), o passeio na Medina, o tour pelas lojas de seus melhores amigos e a companhia de seu gatinho durante a madrugada insone.

Bueno... Meus companheiros dormiam agora e eu, forçando as pupilas, tentava absorver toda a África que me vinha através da janela do trem. Umas vezes ela se apresentava seca, pobre e suja – especialmente quando abríamos caminho pelos povoados mais isolados; em outras, era verde, viva (apesar do sol fulminante) e incrivelmente sedutora. Chamou-me atenção a quantidade de lixo pelo caminho. Todo aquele plástico acumulado tem uma explicação: os marroquinos foram apresentados aos produtos chineses – muito mais acessíveis que os produtos europeus. Agora até os tradicionais copinhos de chá vêm com o familiar selo MADE IN CHINA. E o plástico, material inútil até pouco dentro dessa cultura artesanal, simples e orgânica, ainda não conhece outro fim que não seja o de lixo que se acumula. Simplesmente não sabem o que fazer com ele. Então, aí fica.

E essa paisagem multifacetada, ora incrível ora cruel, me acompanhou durante o longo trajeto rumo ao coração do Marrocos.

Chegamos à Medina, ou a um dos lados dela. A de Fes é a maior do mundo, tem mais de 9.000 ruas e dezenas portas (informações do nosso poliglota guia Abdulah). Mas, como não fazíamos idéia de qual era a nossa porta (a dos turistas), acabamos entrando “pelos fundos”, onde vive a gente que nasceu na Medina, que trabalha na Medina e que só se sabe dentro dela. Correndo o risco de ser simplista na descrição de tal realidade, conto como me via: dentro de um formigueiro úmido e escuro, de ruazelas que não levam a parte alguma, de casas aglutinadas e disformes, parado em algum lugar no passado onde mulas e gentes, animais que são, ainda dividem o solo para dormir.

“Resulta difícil saber por que aquela gente construía a um modo tão estreito e acumulado, por que tinha que se apertar tanto que um se subia na cabeça do outro. Para defender melhor a cidade? Ignoro. Mas, por outra parte, essa massa de pedra amontoada em um só lugar, essa acumulação de paredes, esse empilhamento de pórticos, nichos e tetos permitiu conservar e preservar – como em uma caixa de gelo – um pouco de sombra, frescura e até suaves correntes de ar nas horas de meio-dia, do calor mais agonizante.” (Ryszard Kapushinski, Ébano)

Por essa labiríntica cidade antiga passam meninas com os cabelos cobertos levando, com todo o seu cuidado, o pão para o forno de barro e lenha; descem mulas carregadas, sobem mulas mais carregadas ainda; crianças guias disputam cada pedaço de turista como se fosse um bolo de chocolate que nunca viram, nem saborearam. Homens, muitos homens, vendem tudo o que fazem – e fazem tudo! De couro a remédio, de massagem a jóias. Os lenços pendurados dão cor às ruas de pedra. Aqui e ali as pessoas se cumprimentam, se beijam, esfregam a barriga em sinal de agradecimento por algo ou apertam o peito esquerdo em mostra de amizade e confiança.

Por esse mundo novo passeamos durante um par de dias – tão curtos, tão rápidos, tão insuficientes. E vimos e compramos e andamos, e andamos, e andamos... Fes nos acolheu em cada beco com “shukrams” (obrigado) “salams” (olá). Só a despedida de nosso guia não foi muito amistosa: depois de ganhar todos os dirhams que tínhamos no bolso (que somaram quase 20 euros), o jovem de 20 se afastou bravo, sem apertar a barriga nem esfregar o coração.
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Continua...