jueves, junio 18, 2009

Sobre príncipes e meninos


Sete da manhã. O Morro da Caixa está na rua, nas pessoas que esperam no frio o ônibus que não vem, nas crianças que caminham a pé para a creche, nos cães que, percebendo o início de um novo dia, já se espreguiçam no meio da rua, revolvem os lixos, se juntam às pessoas que esperam. Um novo dia de greve no sistema público de transporte significa um novo dia de perdas e atrasos, de um dinheiro necessário que talvez não chegue. Quem parece sentir mais os desafios da rotina são as crianças. Cobertas como podem, com seus gorros e luvas, caminham no meio das vielas, das subidas que levam para o alto da favela.

Morro da Caixa, Caiera de Cima, uma das 32 comunidades carentes de Florianópolis. Aqui, o paraíso turístico é nada mais que uma vista: entre as casas sem reboco e os fios da eletricidade roubada, se pode ver a ponte, a beira-mar, a natureza que faz a população da capital triplicar na alta temporada. Nada mais que isso, uma vista que sou convidada a ver por Raí, jovem educador do projeto social Aroeira. Educador e ex-chefe de morro. Raí foi preso aos 15 anos e, ao sair, prometeu que trabalharia até o esgotamento para que nenhum outro jovem passasse pelo o que ele passou. A luta dele tem mostrado os frutos: além de conseguir colocar em acordo os três maiores chefes de morro da ilha, gerando uma frágil mas necessária paz, a maioria de seus alunos já está integrada ao mercado de trabalho.

O método é simples, sem fórmulas mágicas ou receitas que se vendem em discursos. O esporte foi a arma de Raí. Todos os dias, ele sobe o morro e coloca em um ônibus fretado cerca de vinte jovens e crianças de grande vulnerabilidade. A condição é o respeito, a freqüência na escola, o comprometimento. Eles vão para a praia, vestem roupas de borracha, pegam suas pranchas e descobrem a liberdade no surf. Durante a manhã, extravasam todo o sentimento acumulado, toda a dor da marginalização, toda a pressa para sobreviver.

Mas Raí sabe, por experiência, que isso não é suficiente para suprir as necessidades e diminuir o risco dos jovens. Promoveu a construção de uma fábrica de pranchas, onde os meninos da Caiera descobrem o valor do trabalho e do dinheiro, tiram renda e se desviam, ainda que de raspão, do caminho (ou de todos os caminhos) que parecem levar ao tráfico – afinal, o que é um salário quando se pode ganhar muito mais com a venda de drogas?!

Hoje os meninos não tem lanche: “Por que não tem comida hoje Raí?”, pergunta Dudu. “Quem mandou vocês jogarem o lixo pela janela do ônibus?!” A resposta não deixa margem para tréplica. Assim, apenas por ser um exemplo, Raí ensina (e não é difícil perceber o valor e a entrega que são necessário para fazer o que ele faz). Depois de um par de horas de amizade, esporte e diversão, os meninos embarcam no ônibus que os levará de volta à Caiera. O que preocupa Raí, e que me preocupa também, é o que acontece depois, em cada casa, em cada vida que começa e termina na rotina da favela. Uma coisa que a cidade, apressada lá embaixo, não vê. Raí, o príncipe do morro, sobe mais uma vez para seu castelo de madeira.

martes, junio 16, 2009

Vinicius

*Sebastião Salgado

O Operário em Construção
(inteirinho, porque cada verso vale a pena!)

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.