viernes, julio 31, 2009

O dia seguinte a um atentado

*Associated Press

Está na voz que sai do rádio do táxi, no olhar baixo dos que conversam nas tabernas, nas mesmas fotos e palavras que ilustram as capas dos jornais: mais um atentado do ETA depois do cessar-fogo. Em minhas duas últimas passagens pela Espanha, presenciei o temor que se seguiu ao fim da trégua, o atentado no Campo das Nações em fevereiro e agora a explosão de um carro-bomba em Burgos, ao lado de um edifício da guarda-civil onde dormiam as famílias dos policiais.

Hoje, dia seguinte ao ataque, pelas ruas se vê nada mais que dúvida e inconformidade: para quê? E mal havíamos começado a pensar nas possíveis respostas quando,nas TVs, rádios e jornais nos informam da morte de dois guardas pela explosão de um outro carro-bomba, dessa vez em Mallorca. A sensação suspensa é a de que todos os dias serão dias depois de um atentado, de caras baixas e conversas indignadas.

No ano de seu cinqüentenário, o grupo ETA precisa atacar para existir. Ao mesmo tempo, dá provas de todos os retrocessos em termos de estratégia e maturidade política para defender seu objetivo (ainda que seja nulo em argumentos e legitimidade) de criar de um Estado independente na região que compreende o norte da Espanha e o sudoeste da França. Hoje, o que se escuta por aqui é que não passam de uma banda de criminosos. A desmoralização é total – e é aí que reside a única esperança de todos e, particularmente, a minha. Já não se ouve vozes dissonantes como talvez se pudesse escutar como resposta nas épocas do autoritarismo franquista. Nem mesmo o Partido Nacional Vasco têm o que dizer sobre a anti estratégia e a falta de humanidade da organização etarra. Minhas andanças e meus ouvidos bisbilhoteiros me dizem, aliviados, que o repúdio é unânime.

Num tempo em que já se questiona o paradigma do Estado Nação e o próprio processo de construção das identidades nacionais, o grupo terrorista dá passos para trás. E os resultados dos ataques foram nulos: não conseguiu nada mais do que alguns outros tópicos em sua lista de atrocidades. E, diante da incapacidade de resolver o problema do terrorismo através das instituições políticas e com outros problemas de muitas outras ordens a enfrentar, os espanhóis “tiram pá delante”, um dia após o outro.

Do editorial do El Pais de hoje, mais um dia: “Para cometer atentados como los de Burgos y Mallorca no hace falta mucha fortaleza, sino muy pocos escrúpulos.”

miércoles, julio 22, 2009


Granja de San Idelfonso. Não é uma granja daquelas que vem à memória, cheiro de bolo, galinhas no quintal, uma varanda ensolarada... Nem era de São Ildefonso. Era o palácio de Felipe V, rei da Espanha em 1971. Um baita palácio: em um corredor contei mais de 10 ambientes, todos divididos por cortinas pesadas, cada qual com seu lustre de cristais personalizado. Em cada salão, um tema no teto, um tapete no chão. Os relógios eram carregados nas costas ou na cabeça por estatuetas de negros ou índios. Em uma única sala, três da mesma coleção. Mas a ostentação não surpreendia: como esse há mais meia dúzia.

O que também se contava em dúzias eram os vasos chineses de um metro de altura em cada um dos cantos das salas, sobre os móveis e mesas de mogno. Na última sala, o papel de parede mostrava guerreiros em paisagens de amendoeiras e outras árvores esguias. China. A penteadeira tinha a mesma procedência e ocupava lugar destacado. “Desde aquela época”, disse ao Seba quando reparamos, quase ao mesmo tempo, em mais uma estatueta de olhos puxados.

Em grau excepcionalmente maior, réplicas e tréplicas dos mesmos vasos e dos mesmos bibelôs entopem as prateleiras, caixas e cantos das lojas chinesas em Madrid. Dividem espaço com toda a sorte de comida e apetrecho. Tudo. O mundo colide ali, no buraco negro que pode ser uma aparentemente inofensiva loja de “Frutos secos – Alimentación”.

Olho tudo o que levo comigo. Não há nada, nada, nadinha que não tenha passado, em algum momento do ciclo produtivo, pelas mãos de chineses mal pagos e mal alimentados, em fábricas sem condição alguma de segurança. E, mais que isso, não há nada, nada, nadinha que não tenha algum material vindo, por sua vez, dos grandes contêineres que atravessam o Índico levando tudo o que a África tem (e, quase, tinha).

Somos cúmplices – a verdade é que sempre fomos, nos dois casos, tanto da China quanto no da usurpação da África. Qualquer discurso moralizante sobre o que fazem os chineses dentro de seus muros é bobagem. A credibilidade do ocidente está arruinada há muito tempo, principalmente quando se fala de África. Quando começaram a aparecer os investimentos obscuros e dos acordos escusos da China com os ditadores que persistem no continente, as reações (as mais fáceis em termos discursivos e argumentativos) se baseavam precisamente nisso. Quando ficaram vazias, começou-se a debater o futuro dos monopólios que até hoje atuavam abaixo do Saara. Já não mais.

Em 2002 a China passou os Estados Unidos no valor bruto do comércio com os países da África Sub-saariana. Por motivos bem simples, tendo em vista que o continente tem tudo o que Pequim quer e precisa para não deixar 25 milhões de desempregados a cada ano caso a economia não cresça mais de 8%. Ai de se isso não acontecer... O elefante vai cair da bicicleta desgovernada, e o mundo vai sentir o tremor. Quem pode manter esse ritmo senão o continente mais rico em recursos naturais?! Os reis espanhóis não contavam com isso. Ninguém contava (ou contava, tirando proveito, caladinho, da situação que se desenhava).

Sem grandes restrições por parte dos governos locais, por motivos óbvios, e graças ao avanço dos pacotes públicos e privados chineses no continente, as economias da África Sub-saariana cresceram uma média de 6% ao ano desde 2004, com as nações exportadoras de petróleo e minerais na linha de frente. Muitos acreditam que China seja a última oportunidade de África (ainda que muito do que venha vá diretamente aos bolsos das elites e dos corruptos do momento).

Os países, por outro lado, estão vendo a fuga de sua maior riqueza, que lhes garantiria fundos futruros se bem administrada. Além disso, estão observando a derrocada de sua incipiente indústria com a entrada dos produtos falsificados. África está fardada a ser o centro das minas do mundo? A população quer esse modelo de desenvolvimento e de integração à economia global? Tem outra opção?

Seguimos a visita ao palácio-granja com isso e nada mais na cabeça. Os desenhos nos vasos chineses se tornaram sombras daquelas, chinesas. Quando acenderão as luzes!?

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Aqui, um trechinho do texto do Seba que faz parte do jornal SUR-SUR, nossa produção independente exclusiva para o curso na Complu. Material de primeiríssima mão. A primeira edição é um dossiê especial: “El comodín bajo la manga”. Que disfruteis!

“China empezó su nueva penetración en África hace diez años, atraída por las riquezas minerales del continente, sobre todo por sus reservas de petróleo y gas (sin olvidar las de cobre, cobalto, carbón y oro) necesarias para permitir que se mantenga en el país asiático un rápido ritmo de crecimiento económico. Pero fue también la presencia de mercados de fácil penetración, en los que las manufacturas chinas, de buena tecnología y poco precio, desbaratan toda competencia, lo que atrajo la atención de Pekín. Resumiendo: China ha encontrado en África a principios del siglo XXI el territorio virgen y prometedor que le permite saciar su sed de recursos, al igual que EE UU tuvo en el siglo XIX su far west y Europa hasta el siglo XX al resto del mundo. En 2008, el comercio entre China y África alcanzó un valor de 76.000 millones de euros, diez veces más que en 2000. La cifra es cuatro veces superior al total de la ayuda oficial al desarrollo que recibió el continente africano en 2008.”

* Quando estiver pronto, coloco o jornalzinho aqui em PDF.

viernes, julio 10, 2009

Impressões


* Calle Carmen num sábado à tarde. Laura Daudén.

Coisas que vejo, escuto, aprendo e percebo nas andanças e nas aulas. Assim mesmo. Um pouco de cada, uma “ensaladilla mixta”, como se diz por essas bandas. A justificativa é simples: é como estão acontecendo para mim nos últimos dias, de maneira difusa, misturada, desorganizada – mas só de longe. Espero que tudo faça bastante sentido quando colocar em perspectiva, como bem fez o Professor Sanahuja na terça-feira, numa aula que acabou com aplausos. De maneira alguma pretendo tentar fazer o que ele conseguiu: de dados aparentemente dispersos, construir – e o melhor – ensinar toda a lógica das relações que fazem parte da nossa realidade. São só pinceladas, talvez um desafio pessoal que divido com vocês.
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Num chiringito (leia-se “boteco”): entra a chinesa com cabelos loiros. Oferece CDs e DVDs, “os últimos lançamentos”, jura em espanhol enrolado. Não vende um sequer. Sai e, logo depois, outro comerciante adentra e tira da sacola de plástico um relógio e um óculos. Passa de mesa em mesa oferecendo a mercadoria. Sai com menos energia do que entrou. Aí vai o estado do bem-estar social, desaparecendo como miragem no calor madrileño.

Numa cerimônia oficial: Depois de dizer que os estudantes internacionais ocuparam quase metade das vagas (1º - México, 2º - Brasil, 3º - Colômbia) e que as mulheres são maioria expressiva, um economista respeitadíssimo explica a todos os futuros alunos da universidade, de maneira clara cristalina, cada passo que levou à crise financeira que todos estamos vivendo (por aqui o tema é obsessão, por motivos sensíveis e visíveis). Terminou dizendo que a solução está na medida entre a influência do Estado na economia e a liberalização dos mercados (alguém pensou nisso umas dezenas de anos atrás, não?!). Terminou sem mencionar como e quem decide sobre esse equilíbrio.

No metrô: Sebastián se aproxima do violonista que já tem o microfone em posição, ainda que não possa cantar na plataforma. O trem só chega em três minutos e ele consegue, nesse tempo, contar que é equatoriano, que está desempregado, que mora em Madri há doze anos, que não sabe nada música flamenca, que não pode responder ao nosso pedido porque podem lhe expulsar do metrô, e que tem que entrar no vagão mais cheio de todos, para andar ao lado da sorte. O trem chega, pára, ele entra, some, parte, a gente fica. Pensando.

No caminho para a faculdade: Ela acabou de se formar em jornalismo, como eu, e veio da Venezuela com o que podia trazer. Eu não sabia até então que os venezuelanos têm um limite de dinheiro para viajar: cada pessoa pode converter $1700. Mesmo que tenha mais dinheiro. Mesmo que tenha que passar um ano fora. Ela veio para a Espanha sozinha, para fazer o curso, com o sonho de voltar com um computador (as compras pela internet estão limitadas aos $400). Metade do que trouxe vai para o investimento. O resto é para o malabarismo. Só assim.

Na parada: Saio do metrô Banco de Espanha em busca da Calle Zorilla – onde acontecia uma exposição de Dorethea Lange (genial, por sinal) –, e coloco a cabeça para fora no meio da Parada do Orgulho Gay de Madri. Um milhão e meio de pessoas pediam que o Estado espanhol fosse laico na prática e que respeitasse o direito de união de pessoas do mesmo sexo. Duas senhoras, com cabelos brancos e olhar curioso, cochichavam de lado enquanto viam passar a bateria regida por um brasileiro e liderada por uma passista (bandeira estrategicamente amarrada na cintura).

Na aula: Todos sentados, entra o Professor Sanahuja e pede que, antes de mais nada, respondamos à seguinte questão: “quem manda aqui?”. Silêncio. As cinco horas que se seguiram foram de total concentração, de discussões sobre crise, China, guerra e narcotráfico, quebradas apenas por um bom-humor e por outras perguntas ainda mais capciosas. Algumas idéias: “quando se escreve a realidade, se está construindo a realidade. Quando descrevemos... estamos descrevendo ou concretizando em forma de discurso uma aspiração?”, “a definição de uma ameaça é uma tomada de poder, é um ato político”, “o Estado-Nação já não é parte da solução, é parte do problema”, “vivemos em uma sociedade apolar: ninguém tem o poder, ele está demasiadamente difuso, fragmentado em 192 países soberanos”. Resumindo: quem manda aqui? Ninguém.

lunes, julio 06, 2009

Por terras estrangeiras

Parece que longe de casa nos abrimos mais para as singularidades do cotidiano. Estou em um bar/cafeteria chamado Cristina - suponho que é a morena alta e forte que comanda o balcão e a cozinha ao mesmo tempo. São quase 15h de um sábado de calor infernal. Madrid está vazia (como bem comemorou o motorista de taxi, poucas horas antes, em cada esquina que dobramos). Cristina tem uma garçonete para as quatro mesas. Me serviu uma jarra de água da torneira, um pão, salmorejo e frango ao molho roquefort. O homem ao meu lado não passou da coca-cola, que ainda ocupa um terço do copo, descendo lentamente enquanto o senhor se perde na leitura de um exemplar volumoso. Sete pessoas de uma família se apertam na mesa à esquerda e tratam de dar conta da comida que não para de chegar. O avô, na cabeceira, guia as discussões típicas. Do outro lado do salãozinho - que, apesar de pequeno, consegue abrigar uma luminosa máquina de apostas -, uma mulher, amiga da garçonete, cuida de um bebê. Balança de um lado a outro o soprinho de vida e, em cada intervalo, vê a amiga mimá-lo. Depois de uma dessas cenas pacíficas, que me enchem o coração de saudade, a garçonete se dirige a mim: "Cariño, eres de aqui?!". Diante da explicação de que venho do outro lado do charco, ela questiona: "Y que haces tan lejos?". Vim estudar, respondo - mas a verdade é que não tenho certeza do que falei. Parece uma frase demasiadamente limitadora para o que eu sinto que começa a acontecer na minha vida a partir de agora.