viernes, mayo 23, 2008

Brinde solitário


Entrou como se fosse da casa. Não era a primeira vez que estava no restaurante e já conhecia os degraus que separavam a entrada do salão. Não titubeou: escolheu a melhor mesa (são sempre ao lado de uma linda janela) e se sentou de maneira esparramada, num conforto quase forçado. Queria atenção e, para tanto, gesticulava impaciente para o garçom que, percebendo a aflição do cliente, apresentou-se solícito. O cliente foi rasteiro e, como diria minha avó, tratou o jovem atendente “com casca e tudo”. Pediu o mais caro tinto do menu para a entrada. Fechou o cardápio e aguardou olhando o movimento através da janela. É... Estava só, mas ainda tinha aquela janela...

Tinha bondade no fundo do olhar e os ares da maturidade precoce – ai, os ares da maturidade... - escondiam a carência do menino já homem, ou quase homem, ou quase menino. Tinha classe, e isso o que lhe importava. E a janela... através daquele recorte de mundo, via as senhoras e senhoritas, cada qual a sua maneira. Mal sabiam elas que, enquanto passeavam na noite, passavam pelo crivo do rapaz. Nenhuma lhe parecia bela o suficiente, mas isso não vem ao caso porque o vinho chegou rápido e o desviou de seus pensamentos.

O cheiro da rolha o fez fechar os olhos. Sem se dirigir ao garçom, viu o tinto encher um quinto da taça e rebolar com o movimento feito para que o aroma se apurasse. Num ritual conhecido, cheirou e bebeu e aprovou. E seguiu tomando, enquanto o prato principal não chegava. Mas também logo, chegou. E ele se refestelou sozinho, e criticou sozinho um tempero diferente, e sozinho devolveu os pratos ao garçom enquanto pedia um delicioso bolo de chocolate com sorvete para a sobremesa.

Não pôde dividir com ninguém a vontade daquele doce e, pior, o prazer satisfeito nas duas primeiras garfadas. Isso porque na terceira ele parou, olhando desolado para o pratinho decorado de flores. Sem mais nada a pedir, sem mais vinho na garrafa, se pôs a brincar com o bolo e o sorvete, transformando-os em uma papa mole e feia – assim mesmo como os pais não nos deixam fazer quando somos crianças. O garçom trouxe a conta, ele pagou e saiu como entrou, deixando para trás qualquer vestígio de solidão e criancice.
*Pintura de Judi Bagnato

1 comentario:

José Lacerda (Jolac) dijo...

Minha cara Laura,
Enfim, o retorno! Ler seus textos sempre é um bom momento. Mas, egoisticamente, você os retém na memória, raramente publicando um ou outro. Se os que reparte são ótimos, imagino os que guarda só para si.
Este seu personagem solitário deve ter sido inspirado em sua viagem à Espanha, onde tudo pode até ser lindo, mas não temos os que amamos ali ao lado. Aí vem o sentimento de solidão.