sábado, febrero 02, 2008

De boca cheia

Há muito tempo não se via tanta água por aqui. A cidade amanheceu nebulosa e, pelo rádio, diziam-nos para evitar sair de casa. Mesmo assim, tive que contrariar o locutor preocupado: um exame me colocou na rua em meio ao aguaceiro que um dia foi Florianópolis. Felizmente não fiquei presa em nenhum alagamento, não cai em nenhum dos muitos buracos, nem mesmo me molhei muito. Mas pela televisão e através da internet não paravam de chegar imagens de pessoas sem a mesma sorte. Em poucas horas, a água tomou conta de ruas e casas, expulsando familias e tornando lama tudo o que elas tiveram que deixar para trás.

Zapeando, sequinha e no conforto do lar, sintonizei aquilo que parecia – ou deveria ser – uma reunião de autoridades (para as quais, sem remédio, entregamos nossa confiança a cada quatro anos). Conversavam sobre os problemas que eu tinha visto naquela manhã. Estranhamente, falavam como se o mundo que se derramava em gotas fosse outro, bem longe dali onde eles se apertavam. Uma espécie de distanciamento mórbido, uma negligência desmascarada exibindo-se em rede aberta.

Enquanto um ou outro tomava a palavra, os demais eram deliciados por pequenos e suculentos pães-de-queijo, que enchiam seus papos gordos e esfomeados. O desinteresse era tamanho que a autoridade-mor prestava mais atenção ao garçom, que não parava de suprir os famintos do alto escalão, do que ao colega político – que, por sua vez, utilizava-se da milenar arte da retórica para chegar a lugar algum. Mesmo se fosse perguntado, não poderia responder o que o governo vai fazer para evitar que a situação de calamidade se repita: estava de boca cheia.

Logo abaixo das caras refesteladas e quase preocupadas, uma legenda tentava avisar do problema aos telespectadores e cidadãos desatentos: “ Autoridades se reúnem para resolver a chuva”. Que bom! Depois do próximo pão-de-queijo, eles entrarão em contato direto com São Pedro! Assim se resolvem as coisas!

Inacreditável! E ainda tem gente que diz que temos sorte de morar num país sem grandes problemas geofísicos... Tinha prometido não fazer uma crônica política. Já temos o suficiente, não acham?! Sei que a cidade sobreviveu e que os danos materiais das tantas famílias são tão grandes quanto os danos morais que deixamos ocorrer, todos os dias, sob chuva ou sol. Mas a boca grande das 'autoridades' foi o fim.

Olho para fora mas a nebulosidade não me deixa ver aquilo que chamam de perspectiva.

1 comentario:

Anónimo dijo...

É cara Laurinha, o dilúvio já foi um sinal de castigo, no texto bíblico, e agora deve ter sido um castigo atual para os que votaram nos tais políticos-com-pão
-de-queijo-na-boca!
É sempre assim: vota-se sem critério algum e acabam eleitos os comilões de pães de queijo.
Muitos dos que perderam casa, e até parentes, podem ter votado num mequetrefe qualquer em troca de uma cesta básica, ou por dinheiro.
Aí vem o dilúvio flori-
pediano e mata justamente os que elegeram a autoridade que não cuida da cidade... e mata seus filhos!
Mesmo que vc olhe todos os dias pela janela, vai demorar ainda para ver a tal perspectiva.
Seu lamento foi sentido através de seu texto.